Em um prostíbulo, mulheres adultas são
forçadas a prestar favores sexuais e a conviver com menores exploradas. O
dinheiro fica para o cafetão e, se alguém denunciar, corre risco de morte.
Embora criminosa esta cena não é tão excepcional quanto parece --ela faz parte
do cotidiano de muitas cidades brasileiras. No Brasil, prostituição não é
crime, é uma profissão legalizada. Ilegais são as casas de prostituição, o que
dá margem aos mais diversos tipos de abusos e corrupção. De olho no aumento da exploração sexual
durante a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, o deputado
federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) protocolou um projeto de lei na Câmara dos
Deputados para regularizar a profissão das prostitutas. Ele quer que a proposta
seja aprovada até 2014, para evitar a proliferação de casos como o divulgado no
último dia 10, quando uma jovem conseguiu fugir de uma casa onde era explorada
sexualmente e mantida em cativeiro, em São Paulo.
Não é
a primeira vez que uma iniciativa como a de Wyllys é levada a cabo no Brasil. O
ex-deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) já havia protocolado um projeto semelhante
durante seu mandato (1995-2011), mas o texto foi arquivado após ele deixar a
Câmara. Agora, o diálogo com as prostitutas voltou a ganhar força, com a
expectativa gerada por estes dois grandes eventos esportivos.
UOL - Por que
um projeto de lei que regulamente o trabalho das prostitutas?
Jean Wyllys - Há uma demanda pelo
serviço sexual das prostitutas e dos prostitutos, pois a prostituição não é só
feminina. Essas pessoas existem, elas são sujeitos de direitos. As prostitutas
se organizaram em um movimento político nos anos 70 e início dos anos 80, um
movimento que no Brasil foi encabeçado principalmente pela Gabriela Leite,
fundadora da grife Daspu e presidente da ONG Da Vida. O projeto é um esforço de
atender à reivindicação deste movimento. Tais reivindicações estão em absoluto
acordo com a minha defesa pelas liberdades individuais, pela defesa dos
direitos humanos de minorias, ou seja, não é uma pauta alienígena ao meu
mandato, ao que eu defendo, como os direitos sexuais e reprodutivos da mulher,
a descriminalização das drogas e os direitos dos LGBTs. Já houve uma tentativa
de atender à demanda deste movimento antes [com o ex-deputado Gabeira], e eu
retomei. Então temos uma segunda tentativa agora, com um projeto mais
bem-elaborado e construído em parceria com o movimento social. Antes de eu
protocolar esse projeto, ele foi submetido a várias reuniões com lideranças do
movimento das prostitutas e com feministas. Foi um projeto amplamente discutido.
UOL - Em que
pé está a tramitação do projeto na Câmara?
Wyllys - O projeto está
agora na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, onde será relatado pela
deputada Érika Kokay (PT-DF), que é favorável a ele. Em seguida, vai para a
Comissão de Seguridade Social e Família e, depois, para plenário. Mas esse
projeto tem um objetivo maior, que é garantir dignidade às profissionais do
sexo, reconhecer seus direitos trabalhistas. Atualmente, elas não contam com
dignidade, são exploradas por redes de tráfico humano, por cafetões e por
proxenetas. Por que isso acontece? Porque a prostituição não é crime no Brasil,
mas as casas de prostituição são. E são poucas as prostitutas que trabalham de
maneira absolutamente autônoma, sem precisar de um entorno e de relações.
Então, a maioria delas acaba caindo em casas que operam no vácuo da legalidade.
O projeto quer acabar com isso. Garantir, portanto, direitos trabalhistas e uma
prestação de serviço em um ambiente absolutamente seguro. Outro objetivo do
projeto é o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. Um erro
muito cometido pela imprensa, um erro comum, é falar em prostituição infantil.
Não existe prostituição infantil. A prostituição é uma atividade exercida por
uma pessoa adulta e capaz. Se uma criança faz sexo em troca de dinheiro, em
troca de objetos, seja lá o que for esta criança está sendo abusada
sexualmente, e exploração sexual é crime. Atualmente, muitas crianças são
exploradas em casas de prostituição, justamente porque essas casas são ilegais,
elas não têm fiscalização. Quando a polícia consegue investigar uma casa, o
policial acaba recebendo propina. E as prostitutas adultas não podem sequer
denunciar. Se denunciarem, o proxeneta mata. É uma situação que não pode
continuar. O que pode resolver este estado de coisas é um projeto que
regulamente a atividade das prostitutas e torne legais as casas de prostituição.
UOL - Então o
projeto está focado na legalização das casas?
Wyllys - Exatamente, porque
a prostituição não é crime no Brasil. A prostituição é estigmatizada e
marginalizada, mas não é crime o que a prostituta faz, ela não é uma criminosa.
O que é crime, segundo o Código Penal, é a casa de prostituição. Só que, ao
fazer da casa de prostituição um crime, a prostituta é taxada como criminosa,
porque nenhuma prostituta é autônoma a ponto de trabalhar sozinha. E, embora a
casa de prostituição seja crime, eu, você, toda a imprensa e a polícia sabe que
há casas de prostituição funcionando. Se estão funcionando no vácuo da
legalidade, alguém está permitindo que funcionem assim, alguém está recebendo
propina para não denunciá-las. Temos aí o crime da corrupção policial como um
crime decorrente da ilegalidade das casas. Então, é melhor para todo mundo que
as casas operem na legalidade, que o Estado possa recolher impostos,
fiscalizá-las, levar políticas públicas de saúde da mulher e, sobretudo,
proteger as crianças e adolescentes.
UOL - O
projeto de lei contempla apenas prostitutas mulheres acima dos 18 anos ou
outras formas de prostituição, como a masculina e a de travestis?
Wyllys - Todas as pessoas
adultas e capazes, incluindo as mulheres transexuais, as travestis e os garotos
de programa. Então, a ideia é para todos, é um projeto que vai se aperfeiçoar
na medida em que ele for sendo relatado, porque a cada relatoria novas questões
vão sendo incorporadas. Num primeiro momento, eu ouvi muito mais as mulheres, é
verdade, porque esse movimento está organizado desde o final dos anos 70. Os
garotos de programa não se mobilizaram em um movimento político, eles existem
como um coletivo disperso.
UOL - Há um
prazo para o projeto ir a plenário?
Wyllys - Não, não há um
prazo, porque tem a tramitação nas comissões. Eu vou colocar todas as minhas
relações na Câmara para fazer o projeto tramitar, e é claro que eu vou contar
com aliados, porque haverá uma bancada que provavelmente vai se opor ao
projeto, e vai se opor por puro moralismo. A oposição que eu vou ter é esta, é
uma oposição moral. Mas eu vou concentrar todos os meus esforços para fazer o
projeto tramitar o mais rápido possível, antes da Copa do Mundo. Talvez
converse com as lideranças da bancada do PT, que são prováveis aliados, com
bancadas de esquerda e com a bancada feminina, que é uma bancada controversa,
porque não há um consenso nesta bancada sobre a prostituição.
UOL - Quais as
principais barreiras para a aprovação do projeto no Congresso?
Wyllys - Essa bancada
moralista, a bancada conservadora que reúne evangélicos fundamentalistas,
católicos fundamentalistas e conservadores laicos, que não são católicos nem
evangélicos, mas são conservadores, hipócritas, moralistas.
UOL - E as
principais barreiras na sociedade na luta pelos direitos das profissionais do
sexo?
Wyllys - Eu não sei dizer,
não vou falar em nome de toda a sociedade, detesto essa generalidade. A
sociedade é muito diversa para eu falar em nome dela. O que posso dizer é que,
desde que protocolei esse projeto, tenho recebido reações de apoio que me
surpreendem, que vêm de pessoas que eu nem esperava que fossem apoiar. E, ao
mesmo tempo, claro que apareceram vozes dizendo que o deputado Jean Wyllys quer
incentivar a prostituição. É um discurso rasteiro. Eu não quero incentivar a
prostituição, as prostitutas existem, elas estão aí prestando serviço, e, se há
um serviço, há demanda. A sociedade que estigmatiza e marginaliza a prostituta
é a mesma sociedade que recorre a ela. Eu não estou inventando este estado de
coisas. Na narrativa mais antiga produzida pela humanidade, a prostituição já é
citada. Não é à toa que dizem que é a profissão mais antiga do mundo. Eu quero
dar dignidade a estas profissionais, sobretudo o proletariado. Pois aquela
prostituta de classe média alta que divide um apartamento no Rio ou nos Jardins
de São Paulo talvez seja menos vulnerável que o proletariado da prostituição,
que depende das casas e de exploradores sexuais. Eu quero proteger os direitos
delas, garantir a dignidade e combater a exploração sexual de crianças e
adolescentes. Qualquer pessoa de bom senso entende isso e se coloca a favor do
projeto. Quem tem se colocado contra é quem quer deturpar deliberadamente o
projeto ou pessoas muito moralistas, que acham que a prostituição é um mal em
si. E aí não adianta você argumentar que é uma questão de liberdade individual,
que uma pessoa adulta pode escolher ser prostituta. Se as pessoas não
compreendem isso, vão achar sempre que a prostituição é uma desgraça.
UOL - Que
situação o senhor visualiza no Brasil durante a Copa e as Olimpíadas?
Wyllys - Eu acho que vai
haver um aumento da demanda por serviços sexuais, porque haverá muito mais
turistas. As pessoas vão prestar esses serviços, então que elas prestem os
serviços dentro de regras mínimas, que proteja tanto um quanto outro. Quantos
turistas não são levados por redes de exploradores de prostitutas, em que elas
servem de laranja para um crime? É para proteger ambos os lados, não só o lado
de quem oferta o serviço, mas também de quem demanda.
UOL - O senhor
conversa com prostitutas sobre as perspectivas para esses dois eventos
esportivos?
Wyllys - Sim, claro. Como eu
disse, esse projeto foi construído com elas. Estive com prostitutas no Pará, na
Bahia, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais. E por meio de redes sociais. É uma
demanda das prostitutas, que encontraram no meu mandato o diálogo que elas
tinham antes com o Gabeira. Eu sou o único deputado hoje que pode abrir o
mandato para essa demanda. Os deputados têm medo dessa pauta, têm medo de serem
estigmatizados por essa pauta, de serem difamados e de perder as eleições. Eu
não tenho medo de perder as eleições, não nasci deputado, sou professor
universitário e jornalista. Se eu não conseguir me reeleger na próxima eleição,
tenho meu trabalho, minha profissão. Então, eu não vou temer defender uma
minoria. As prostitutas têm uma perspectiva em relação à Copa do Mundo e às
Olimpíadas de que a exploração vai aumentar, elas vão ser expostas a uma
violência ainda maior, a integridade das crianças e adolescentes vai estar
ainda mais ameaçada.
UOL - Como o
senhor avalia o surgimento de movimentos neofeministas como o ucraniano Femen,
que realiza protestos na Europa contra a prostituição?
Wyllys - Existem feminismos
no plural, e não feminismo. Eu não vou falar do Femen, porque não conheço essas
meninas, para além de elas colocarem o peito na rua. Mas eu conheço o feminismo
de longa data, eu me considero feminista e tenho muitas amigas feministas. Há
um feminismo de viés esquerdista e socialista que é abolicionista, ou seja,
quer abolir a prostituição, porque considera a prostituição um subproduto do
regime capitalista. Esse discurso é equivocado, na medida em que antes do
capitalismo já existia a prostituição. De mais a mais, todos somos mercadoria
numa sociedade capitalista, todos nós vendemos a nossa força de trabalho,
utilizamos o nosso corpo para empreender e executar esse trabalho. Não é por
conta disso que a gente vai negar a uma categoria os direitos trabalhistas. O
outro equívoco desse feminismo socialista é que ele advoga pela autonomia da
mulher sobre o seu corpo, e aí quer tutelar o corpo da mulher dizendo que ela
não tem o direito de prestar um serviço sexual com o seu corpo. Que história é
essa? Então você faz um discurso de que quer libertar a mulher e de que a
mulher é dona de seu corpo, que não se pode tutelar o corpo da mulher, para
tutelar o corpo da mulher? Ora. Tanto é que na França há um embate entre a
ministra dos Direitos das Mulheres [Najat Vallaud-Belkacem, que é feminista
abolicionista] e o movimento das prostitutas, que dizem "nós escolhemos
ser prostitutas, não somos vítimas. A gente só quer trabalhar com dignidade e
garantir os nossos direitos". Ou seja, a mulher tem que ter autonomia
sobre o seu corpo, inclusive para se prostituir, se ela quiser. E há ainda um
terceiro ponto no discurso dessas feministas, que as coloca ao lado da Igreja.
Se estas feministas lutam pelo direito ao aborto, como elas podem dar mão à
igreja contra o direito à prostituição? Não lhe parece um paradoxo, que elas
defendam o direito ao aborto e neguem à mulher o direito a se prostituir? Isso
é moralismo e um policiamento da sexualidade feminina.